Há uns tantos anos atrás, em 2010, eu estava aleatoriamente vagando pelo YouTube, procurando fanvídeos sobre The Tudors, e vi um vídeo sobre a Ana Bolena da Natalie Dormer ao som de uma tal de Florence. Foi amor primeiro a essa tal de Florence.
Acho que já narrei antes aqui no blog e em diversas mídias sociais sobre meu amor pela Florence e sobre como ela me conectou ao paganismo e aos Deuses, mas nunca parei realmente pra refletir sobre isso de forma mais profunda.
Eis que a mesma, dona Florence, me lança uma oportunidade na cara, e eu não poderia deixar passar.
How Big, How Blue, How Beautiful terá seu lançamento oficial dia primeiro de junho, mas claro, foi vazado antes. E eu baixei sem culpa no coração porque vou comprar depois e porque eu passei quase 4 anos esperando essa mulher.lançar alguma coisa.
Eu realmente fiquei muito emocionada ao ouvir o CD, minha pressão baixou e eu comecei a tremer, inclusive chorei em uma das faixas. Acho que ouvir Florence é um daqueles raros momentos em que me sinto realmente compreendida e totalmente arrebatada, é inexplicável, é espiritual. Como eu disse no twitter, é como se eu fosse realmente despedaçada e arrastada pra outro plano, outra dimensão.
Duas músicas que me capturaram de forma profunda e interpretei de forma muito pessoal foram: Mother e Which Witch, sobre as quais eu pretendo analisar abaixo, mas de forma muito pessoal e conectada a minha vida enquanto mulher pagã.
Na minha interpretação, Mother é totalmente sobre a polaridade entre a divindade feminina e a masculina, sobre o Deus Pai do Cristianismo e a sociedade patriarcal e a busca pela Deusa, a Mãe do título. Como anteriormente frisei, é algo que está profundamente relacionado com a minha vida. Eu passei quase 20 anos como uma mulher pagã em uma sociedade cristã que me culpava pelos meus mais básicos instintos, que tentava me castrar sexualmente e me apresentava uma divindade masculina que no final acabou sendo pra mim tão opressora e distante quanto o pai que abandonou aos 15 anos e me destruiu emocionalmente de uma forma que acho que nunca haverá reparação material ou psicológico suficiente.
Oh lord, won’t you leave me
Oh senhor, você não vai me deixar?
Leave me on my knees
Deixe-me de joelhos
Cause I belong to the ground now
Porque eu pertenço ao chão
And it belongs to thee
E ele pertence a ti.
And oh lord, won’t you leave me
E, ó senhor, você não vai me deixar?
Leave me just like this
Deixe-me assim
Cause I belong to the ground now
Porque eu pertenço ao chão, agora
I want no more than this
Eu não quero mais do que isso.
Nessa primeira estrofe, senti muito do que eu sempre senti em relação a Divindade Cristã e ao meu próprio pai, aquela vontade imensa de fugir e aquela inevitabilidade de não escapar do julgo daquela figura paternal (Eu pertenço ao chão agora/E ele pertence a ti), também vejo muito da questão do materialismo pagão versus o transcendentalismo cristão (Porque eu pertenço ao chão, agora/ Eu não quero mais do que isso), que também foi um conflito particular anterior a minha volta ao paganismo, eu sempre achei e senti que era profundamente errado esperar e ansiar por uma vida pós-morte que fosse melhor que essa vida, quando o nosso mundo material é tão divino, tão sagrado.
Nunca consegui ver o sexo, por exemplo, como algo profano. Não! Pra mim sempre pareceu a mais sagrada expressão da animalidade humana. E essa animalidade não é algo negativo, mas algo primal, algo que nos reconecta a nossa ancestralidade, a vida, a terra. Hoje em dia, é fácil expressar isso, mas aos 12-13 anos vivendo a puberdade e cercada por toda a culpa cristã profundamente embutida na sociedade e profundamente conectada a toda a repressão sexual feminina no ocidente, foi difícil, foi psicologicamente árduo resistir até perceber que não era eu quem era louca, mas a sociedade que era aprisionadora. Ver a Florence expressar algo tão profundamente particular que nunca eu fui capaz de botar em palavras foi absolutamente libertador.
Enquanto os primeiros versos retratam essa figura paterna, o Deus Cristão mesmo, os versos seguintes parecem falar da figura materna, a Mãe, do título, que para mim parece ser a Deusa do neopaganismo e presente nas Deusas dos panteões das diversas vertentes do politeísmo moderno:
(..;)
Mother, make me
Mãe, faça-me
Make me a big tall tree
Faça-me uma grande árvore
So I can shed my leaves and let it blow through me
Então poderei perder minhas folhas e deixá-las voar para longer
Mother, make me
Mãe, faça-me
Make me a big grey cloud
Faça-me uma grande nuvem cinzenta
So I can rain on you things I can’t say out loud
Para que eu possa chover as coisas que eu não posso voiciferar
(.;;)
Mother, make me
Mãe, faça-me
Make me a bird of prey
Faça-me um pássaro de rapina
So I can rise above this, let it fall away
Para que eu me erga sobre isso, deixe tudo cair
Mother, make me
Mãe, faça-me
Make me a song so sweet
Faça-me uma doce canção
Heaven trembles, fallen at our feet
O Paraíso treme, caído aos nossos pés.
(…)
Acho que não consigo expressar o quão exata são essas partes sobre a minha relação com a Grande Rainha Morrighan, ou a Grande Deusa Mãe, a quem eu cultuo de uma forma bem livre. Eu sou uma coisinha selvagem e desorganizada, mesmo no paganismo e me considero pagã livre. Tento não estar atada a Wicca ou qualquer outra vertente, porque incorporo elementos muito sincréticos, de outras religiões e de origem relativa as minhas ancestralidades africana e japonesa, na minha vivência pagã. Também não tenho muito definidas essas questões teológicas, porque gosto de viver a particularidade, do reconstrucionismo celta, e a universalidade da Wicca de igual forma. Sou uma criatura estranha.
Mas voltando a Mãe, que eu chamo de Morrighan e que tantos outros chamam de outros nomes, mas vamos ficar em consonância com a Florence e chamá-la de Mãe. Eu recebi o chamado da Mãe aos 12 anos, quando eu comecei a ler As Brumas de Avalon. Embora meus amigos e família pensassem nisso só uma fase pagã-bruxa que quase toda jovem tem, não era. Eu sempre discordei, desde criança, de muita coisa do catolicismo e do cristianismo em geral, apesar do meu profundo apreço pela figura de Jesus e sua história.
Encontrar tão cedo mulheres tão magnificamente fortes e livres como eu sempre quis ser foi algo profundamente impactante na minha psique juvenil. A Divindade por qual Morgana, Viviane, Nimue e as outras filhas de Avalon lutavam, não era a severa figura paterna do cristianismo, mas sim uma Mãe disposta a ouvir e falar com suas filhas, disposta a guiar-lhes mesmo pelo mundo em transição e na crise de Camelot. Era um Mãe de braços abertos, que não as condenava pela sexualidade, mas dava liberdade para vivê-las, era uma Mãe que não via nada de errado em uma mulher querer ser guerreira, literal ou conotativamente, e que dava valor aos sacrifícios daquelas mulheres. Claro que, essa Mãe era ríspida e severa, mas mesmo nos piores momentos de Morgana, eu conseguia sentir a Mãe amando-a de uma forma que eu nunca tinha me sentido amada pelo Deus Cristão.
Então, ao ouvir a Florence gritando por essa Mãe, para que salve-a, que transforme-a numa árvore, num pássaro, significou demais para mim. Também vejo a Mãe na música como aquela que salva, aquela que o eu-lírico busca para encontrar alívio, ao contrário do Senhor Deus anteriormente mencionado, de quem o eu-lírico parece querer fugir. Morrighan e eu vivemos vários momentos assim, momentos difíceis que eu quis ser salva, ser levada para longe. Nos outros excertos da música a Florence fala de um romance, que provavelmente é a causa do conflito da música. Eu também passei por (MAIS UM) amor platônico que envolveu altas doses de paganismo que quase me enlouqueceu de dor e a minha relação com Morrighan foi fundamental para que eu não me despedaçasse sob o peso disso.
Mother é absolutamente linda e com um significado muito profundo, para mim.
Mother
Which Witch
Which Witch é uma música sobre a qual eu carrego muitos sentimentos, mas não consigo expressá-los nem que eu ficasse eras dissertando sobre. É a música mais pagã da Florence, sem dúvida. Carrega tambores e um instrumental que definitivamente nos evoca sentimentos pagãos intensos.
Acima de tudo, pois é uma música que fala sobre um julgamento; é dúbio, pois parece ser um eu-lírico em conflito num relacionamento tortuoso, mas a letra carrega também um paralelo direto com os julgamentos das bruxas.
It’s my whole heart
É todo o meu coração
Weighted and measured inside
Pesado e medido por dentro
And it’s an old scar
E é uma cicatriz antiga
Trying to bleach it out
Tentando se purificar
And it’s my whole heart
É todo o meu coração
Deemed and delivered a crime
Atribuído e entregue como um criminoso
I’m on trial, waiting ‘til the beat comes out
Estou em julgamento, esperando até a batida escapar
Definitivamente, não consigo ouvir a música sem traçar imediatamente um paralelo com filmes, livros e séries que assisto desde a infância. De bruxas sendo queimadas, perseguidas e julgadas. Pode parecer muito antigo, mas não é. Até hoje, a mulher pós-moderna sofre julgamentos em todos os níveis. Dentro de relacionamentos, dentro da família, pela mídia, pelo padrão estético social inatingível, pelas religiões patriarcais sempre prontas a montar uma fogueira. Esperando uma bruxa para queimar. Somos julgadas e queimadas a todo momento, seja literal ou figurativamente.
A letra, porém, traz um viés de resistência interessante:
And it’s my whole heart
E é meu coração
While tried and tested, it’s mine
Usado e testado, mas meu
And it’s my whole heart
E é meu coração
Trying to reach it out
Tentando escapar
And it’s my whole heart
E é meu coração
Burned but not buried this time
Queimado, mas não enterrado dessa vez
I’m on trial, waiting ‘til the beat comes out
Estou em julgamento, até a batida escapar
Essa estrofe me faz lembrar, que apesar de tudo, apesar de todo julgamento e todas as fogueiras, nós resistimos. Nós, mulheres, nós, bruxas, bruxos e pagãos do mundo todo, nós estamos aqui, queimados, mas não enterrados. Nós seguimos em frente. Pois nossos corações ainda são nossos, assim como nossas crenças. E vamos continuar aqui, resistindo e lutando.
E Florence continuará, conosco. Cantando por nós. E pela Deusa. E pelos Deuses.
Until the beat comes out.