Matinta: A bruxa amazônica saindo das trevas.

Ou o  despertar da minha identidade amazônica.

Uma sessão despretensiosa com minha mãe rendeu uma paixão arrebatadora e fulminante por esse curta-metragem extasiante.

matinta

Segue um breve resumo com spoiler: Matinta é sobre a lenda da bruxa amazônica que se transforma em pássaro ou porco. Os registros da Matitnta variam muito na tradição paraense, mas sem dúvida, os elementos que unificam a lenda são a mulher enquanto feiticeira que se transmuta em bicho e de natureza, dúbia, mas geralmente maléfica (devido a forte influência cristã na colonização paraense). A versão do conto é mais para a visão do interior do Pará, onde a matinta ainda é uma figura extremamente forte e protagonista maléfica do jogo maniqueísta cristãos para os caboclos amazônicos. No curta em questão, a Matinta (Dira Paes) lança uma teia de sedução e feitiço ao redor de Felício, destrói-lhe a família induzindo a morte da esposa dele por feitiço. Matinta é destruída pela mãe de Felício, mas durante a sua morte, ela copula com o homem cobiçado e lhe passa a maldição de ser Matinta.

Meu texto vai ser concentrado nas cenas da Dira Paes como Matinta e na leitura feminista, pagã e não-maniqueísta da personagem Walquíria/Matinta Pereira.

bruxaria

Matinta se apaixona por Felício, que é casado. E faz feitiço para obtê-lo. Vejam bem, sou bruxa e não estou falando da abominação que é matar alguém por feitiço (e dá para ser feito, tendo os Senhores e Senhoras para isso), mas o feitiço de Walquíria é uma forma de exercer o poder e alterar a realidade dela. Acima de tudo, a Matinta é uma mulher com agência. É o que bruxas em geral são e isso as vincula fortemente ao feminismo, mas no contexto interiorano paraense, a Matinta é a antítese dos valores tradicionais. Walquíria/a Matinta é independente e trabalha para si mesma, é sensual e jovem e independente, ela não põe rédeas na sua luxúria. Ela é uma ruptura na sociedade interiorana amazônica, é a força primitiva da sexualidade feminina paraense que se contrapõe a colonização cristã. Ela é mais que uma mulher apaixonada ou uma bruxa perversa, ela É a Floresta, ela é a sexualidade mágica e a magia sexual que faz parte de cada pedaço de chão da floresta, da terra pulsante e vibrante e pagã na qual eu nasci. A cena final atesta isso:

final

Essa cena é uma sequência fantástica na qual Felício persegue Walquíria pela mata enquanto a mãe dele esconjura um feitiço para matar a Matinta. É uma cena de apoteose, de união de Eros (sexo) e Thanátos (morte), é a cena em que Walquíria se mostra como Matinta na árvore, em que ela se animaliza em um pássaro-humano de trajes rubros, é a cena que Felício, mesmo viúvo chorando luto, se entrega a Matinta que todos tanto temem. E isso tudo no meio da selva. A cena do homem amazônico (Felício) seduzido por uma bruxa-pássaro no meio da selva amazônica representa, ao meu ver, a sublime vitória do paganismo sobre o civilizado, sobre os valores ocidentais. Não interessa se ela é má ou não, a Matinta é da floresta e a floresta é dela, e lá, mesmo na morte, a Matinta é erótica, morre não de preto, mas num vestido vermelho pulsante e carnal, morre no meio do sexo, da cópula, é a suprema feiticeira amazônica, a força abissal que mesmo na morte traz a cantante vitória da vida. Para mim, uma metáfora da libertação da força sexual da mulher amazônica.

E sim, ela vence no final. Em todos os sentidos.

Afinal de contas, bruxas não podem ser subestimadas.

Muito menos as bruxas amazônicas.

E para quem quiser conferir:

Para que servem os seus Deuses? ou pela Defesa de um Estado Laico.

Brasil em que vivemos me assusta.

Muito.

A onda conservadora encabeçada pelo líder do congresso, Eduardo Cunha juntamente com as bancadas da bala e evangélica, vem representando um retrocesso para as vitórias dos movimentos sociais no país. A PEC 215 e a PL 5.069 são apenas os dois projetos políticos badalados pela grande mídia e nas redes sociais. Mas eles são só a ponta do iceberg. A sombra da privatização das universidades públicas, a falta de uma legislação que foque nas causas LGBT e também o constante aumento de preços e impostos por governo federal se juntam a cena para mostrar um Brasil que está no olho do furacão. Eu não digo crise, eu digo momento de impasse, porque é o momento em que o conflito nos leva a resistência e a busca por melhorias. Embora, infelizmente, essa onda conservadora encontre respaldo no povo brasileiro, não é todo o povo brasileiro que concorda com o que está acontecendo. E é nessa pequena parcela que reside a esperança, pois uma fagulha pode levar a uma explosão, dado o momento certo.

Decidi escrever isso após essa revoltante notícia: A PEC que dá as igrejas evangélicas o direito de questionar o Supremo Tribunal Federal. Essa não é a única forma de expressão dessa bancada em busca de mais poder para os religiosos dentro do contexto político. Os usuários de drogas e os detentos são atendidos socialmente por igrejas, o que fere absurdamente o princípio do Estado Laico. O que me incomoda profundamente é ver a força que essas expressões religiosas cheias de ódio estão tomando e ver pouca ou nenhuma resposta dos outros movimentos religiosos.

Eu sou neopagã, politeísta, no meu altar doméstico estão os meus Deuses de sangue, os africanos e japoneses, e os meus Deuses de alma, celtas, hindus, egípcios e de outros tantos panteões que admiro e com os quais estou em contato quase que diariamente. Mas eu, acima de tudo, PRECISO de um verdadeiro Estado Laico. O Estado Laico não é contra religiões, mas contempla todas e não beneficia nenhuma especial. No entanto, quase todos os locais públicos no Brasil tem um crucifixo. Nossos feriados são católicos. Nossas universidades têm igrejas. Mas eu, enquanto pagã, não posso faltar trabalho ou aula para celebra um sabbath. Tenho que fazer isso aos fins de semana. Eu não paro minha vida pela minha religião, mas paro pela dos outros. E o que eles fazem pela minha e pelas outras? Eles riem. Debocham. Tentam me converter. Ou, então, jogam pedras.

Eu preciso de um Estado Laico para democratizar a discussão sobre religião. Eu preciso de um Estado Laico para que os meus sobrinhos tenham um ensino religioso democrático, que os ensine sobre Jesus tanto quanto sobre Ogum, Xangô, Buda, Kali, Morrighan, Benzentai e Zeus, para que as futuras gerações tenham direito de escolha. Para que os filhos de santo possam andar com suas guias sem medo. Para que os ateus possam ser ateus sem serem julgados ou rotulados como pessoas ruins ou de má fé.

Então, esse texto é um desabafo. Desabafo da dor e da ira que me enchem de ver minha nação desabando e retrocedendo para a idade média.  Do medo que é amanhã ter sido aprovado uma lei na qual seja autorizado os exércitos da Universal entrarem na minha casa, arrombarem meu altar e matarem meu gato, para depois me queimarem na fogueira.

Então, digo, neopagãos, umbandistas, budistas, espíritas e todos os não-cristãos dessa nação: Uni-vos. Para lutar pelo Estado Laico, que não é de nenhum de nós e pertence a todos. Vamos nos manifestar nas ruas e incomodar os que não querem nos ver.

Lembrar que não, NÃO EXISTE UM ÚNICO DEUS SUPREMO QUE NASCEU PRA REINAR SOZINHO SOBRE OS HOMENS. Qualquer Deus vai ter que aceitar os Outros para viver em paz e harmonia.

Nasci sob a sina das Deusas da Face Negra. São as Deusas da Guerra, da Morte e da Vida. Nasci sob Morrighan, nasci sob Kali, nasci sob Oyá, nasci sob Sekhmet. Nasci para a intensidade, para viver e morrer pelo que eu acredito.

E minhas Deusas, minhas Grandes Rainhas, senhoras da Guerra, me forjaram na paixão africana e na resiliência japonesa para uma única coisa: Lutar.

Seja no tatame.

Seja com palavras.

 

A Deusa Canta entre Nós: Paganismo em How Big, How Blue, How Beautiful.

Florence Welch

Há uns tantos anos atrás, em 2010, eu estava aleatoriamente vagando pelo YouTube, procurando fanvídeos sobre The Tudors, e vi um vídeo sobre a Ana Bolena da Natalie Dormer ao som de uma tal de Florence. Foi amor primeiro a essa tal de Florence.

Acho que já narrei antes aqui no blog e em diversas mídias sociais sobre meu amor pela Florence e sobre como ela me conectou ao paganismo e aos Deuses, mas nunca parei realmente pra refletir sobre isso de forma mais profunda.

Eis que a mesma, dona Florence, me lança uma oportunidade na cara, e eu não poderia deixar passar.

How Big, How Blue, How Beautiful terá seu lançamento oficial dia primeiro de junho, mas claro, foi vazado antes. E eu baixei sem culpa no coração porque vou comprar depois e porque eu passei quase 4 anos esperando essa mulher.lançar alguma coisa.

Eu realmente fiquei muito emocionada ao ouvir o CD, minha pressão baixou e eu comecei a tremer, inclusive chorei em uma das faixas. Acho que ouvir Florence é um daqueles raros momentos em que me sinto realmente compreendida e totalmente arrebatada, é inexplicável, é espiritual. Como eu disse no twitter, é como se eu fosse realmente despedaçada e arrastada pra outro plano, outra dimensão.

Duas músicas que me capturaram de forma profunda e interpretei de forma muito pessoal foram: Mother e Which Witch, sobre as quais eu pretendo analisar abaixo, mas de forma muito pessoal e conectada a minha vida enquanto mulher pagã.

  • Mother:

mother

Na minha interpretação, Mother é totalmente sobre a polaridade entre a divindade feminina e a masculina, sobre o Deus Pai do Cristianismo e a sociedade patriarcal e a busca pela Deusa, a Mãe do título. Como anteriormente frisei, é algo que está profundamente relacionado com a minha vida. Eu passei quase 20 anos como uma mulher pagã em uma sociedade cristã que me culpava pelos meus mais básicos instintos, que tentava me castrar sexualmente e me apresentava uma divindade masculina que no final acabou sendo pra mim tão opressora e distante quanto o pai que abandonou aos 15 anos e me destruiu emocionalmente de uma forma que acho que nunca haverá reparação material ou psicológico suficiente.

Oh lord, won’t you leave me

Oh senhor, você não vai me deixar?

Leave me on my knees

Deixe-me de joelhos

Cause I belong to the ground now

Porque eu pertenço ao chão

And it belongs to thee

E ele pertence a ti.

And oh lord, won’t you leave me

E, ó senhor, você não vai me deixar?

Leave me just like this

Deixe-me assim

Cause I belong to the ground now

Porque eu pertenço ao chão, agora

I want no more than this

Eu não quero mais do que isso.

Nessa primeira estrofe, senti muito do que eu sempre senti em relação a Divindade Cristã e ao meu próprio pai, aquela vontade imensa de fugir e aquela inevitabilidade de não escapar do julgo daquela figura paternal (Eu pertenço ao chão agora/E ele pertence a ti), também vejo muito da questão do materialismo pagão versus o transcendentalismo cristão (Porque eu pertenço ao chão, agora/ Eu não quero mais do que isso), que também foi um conflito particular anterior a minha volta ao paganismo, eu sempre achei e senti que era profundamente errado esperar e ansiar por uma vida pós-morte que fosse melhor que essa vida, quando o nosso mundo material é tão divino, tão sagrado.

Nunca consegui ver o sexo, por exemplo, como algo profano. Não! Pra mim sempre pareceu a mais sagrada expressão da animalidade humana. E essa animalidade não é algo negativo, mas algo primal, algo que nos reconecta a nossa ancestralidade, a vida, a terra. Hoje em dia, é fácil expressar isso, mas aos 12-13 anos vivendo a puberdade e cercada por toda a culpa cristã profundamente embutida na sociedade e profundamente conectada a toda a repressão sexual feminina no ocidente, foi difícil, foi psicologicamente árduo resistir até perceber que não era eu quem era louca, mas a sociedade que era aprisionadora. Ver a Florence expressar algo tão profundamente particular que nunca eu fui capaz de botar em palavras foi absolutamente libertador.

Mother

Enquanto os primeiros versos retratam essa figura paterna, o Deus Cristão mesmo, os versos seguintes parecem falar da figura materna, a Mãe, do título, que para mim parece ser a Deusa do neopaganismo e presente nas Deusas dos panteões das diversas vertentes do politeísmo moderno:

(..;)

Mother, make me

Mãe, faça-me

Make me a big tall tree

Faça-me uma grande árvore

So I can shed my leaves and let it blow through me

Então poderei perder minhas folhas e deixá-las voar para longer

Mother, make me

Mãe, faça-me

Make me a big grey cloud

Faça-me uma grande nuvem cinzenta

So I can rain on you things I can’t say out loud

Para que eu possa chover as coisas que eu não posso voiciferar

(.;;)

Mother, make me

Mãe, faça-me

Make me a bird of prey

Faça-me um pássaro de rapina

So I can rise above this, let it fall away

Para que eu me erga sobre isso, deixe tudo cair

Mother, make me

Mãe, faça-me

Make me a song so sweet

Faça-me uma doce canção

Heaven trembles, fallen at our feet

O Paraíso treme, caído aos nossos pés.

(…)

Acho que não consigo expressar o quão exata são essas partes sobre a minha relação com a Grande Rainha Morrighan, ou a Grande Deusa Mãe, a quem eu cultuo de uma forma bem livre. Eu sou uma coisinha selvagem e desorganizada, mesmo no paganismo e me considero pagã livre. Tento não estar atada a Wicca ou qualquer outra vertente, porque incorporo elementos muito sincréticos, de outras religiões e de origem relativa as minhas ancestralidades africana e japonesa, na minha vivência pagã. Também não tenho muito definidas essas questões teológicas, porque gosto de viver a particularidade, do reconstrucionismo celta, e a universalidade da Wicca de igual forma. Sou uma criatura estranha.

Mas voltando a Mãe, que eu chamo de Morrighan e que tantos outros chamam de outros nomes, mas vamos ficar em consonância com a Florence e chamá-la de Mãe. Eu recebi o chamado da Mãe aos 12 anos, quando eu comecei a ler As Brumas de Avalon. Embora meus amigos e família pensassem nisso só uma fase pagã-bruxa que quase toda jovem tem, não era. Eu sempre discordei, desde criança, de muita coisa do catolicismo e do cristianismo em geral, apesar do meu profundo apreço pela figura de Jesus e sua história.

Encontrar tão cedo mulheres tão magnificamente fortes e livres como eu sempre quis ser foi algo profundamente impactante na minha psique juvenil. A Divindade por qual Morgana, Viviane, Nimue e as outras filhas de Avalon lutavam, não era a severa figura paterna do cristianismo, mas sim uma Mãe disposta a ouvir e falar com suas filhas, disposta a guiar-lhes mesmo pelo mundo em transição e na crise de Camelot. Era um Mãe de braços abertos, que não as condenava pela sexualidade, mas dava liberdade para vivê-las, era uma Mãe que não via nada de errado em uma mulher querer ser guerreira, literal ou conotativamente, e que dava valor aos sacrifícios daquelas mulheres. Claro que, essa Mãe era ríspida e severa, mas mesmo nos piores momentos de Morgana, eu conseguia sentir a Mãe amando-a de uma forma que eu nunca tinha me sentido amada pelo Deus Cristão.

Então, ao ouvir a Florence gritando por essa Mãe, para que salve-a, que transforme-a numa árvore, num pássaro, significou demais para mim. Também vejo a Mãe na música como aquela que salva, aquela que o eu-lírico busca para encontrar alívio, ao contrário do Senhor Deus anteriormente mencionado, de quem o eu-lírico parece querer fugir. Morrighan e eu vivemos vários momentos assim, momentos difíceis que eu quis ser salva, ser levada para longe. Nos outros excertos da música a Florence fala de um romance, que provavelmente é a causa do conflito da música. Eu também passei por (MAIS UM) amor platônico que envolveu altas doses de paganismo que quase me enlouqueceu de dor e a minha relação com Morrighan foi fundamental para que eu não me despedaçasse sob o peso disso.

Mother é absolutamente linda e com um significado muito profundo, para mim.

Mother

Mother

  • Which Witch
Which Witch

Which Witch

 

Which Witch é uma música sobre a qual eu carrego muitos sentimentos, mas não consigo expressá-los nem que eu ficasse eras dissertando sobre. É a música mais pagã da Florence, sem dúvida. Carrega tambores e um instrumental que definitivamente nos evoca sentimentos pagãos intensos.

Acima de tudo, pois é uma música que fala sobre um julgamento; é dúbio, pois parece ser um eu-lírico em conflito num relacionamento tortuoso, mas a letra carrega também um paralelo direto com os julgamentos das bruxas.

It’s my whole heart

É todo o meu coração
Weighted and measured inside

Pesado e medido por dentro
And it’s an old scar

E é uma cicatriz antiga
Trying to bleach it out

Tentando se purificar
And it’s my whole heart

É todo o meu coração
Deemed and delivered a crime

Atribuído e entregue como um criminoso
I’m on trial, waiting ‘til the beat comes out

Estou em julgamento, esperando até a batida escapar

 Definitivamente, não consigo ouvir a música sem traçar imediatamente um paralelo com filmes, livros e séries que assisto desde a infância. De bruxas sendo queimadas, perseguidas e julgadas. Pode parecer muito antigo, mas não é. Até hoje, a mulher pós-moderna sofre julgamentos em todos os níveis. Dentro de relacionamentos, dentro da família, pela mídia, pelo padrão estético social inatingível, pelas religiões patriarcais sempre prontas a montar uma fogueira. Esperando uma bruxa para queimar.  Somos julgadas e queimadas a todo momento, seja literal ou figurativamente.

A letra, porém, traz um viés de resistência interessante:

And it’s my whole heart

E é meu coração
While tried and tested, it’s mine

Usado e testado, mas meu
And it’s my whole heart

E é meu coração

Trying to reach it out

Tentando escapar
And it’s my whole heart

E é meu coração
Burned but not buried this time

Queimado, mas não enterrado dessa vez
I’m on trial, waiting ‘til the beat comes out

Estou em julgamento, até a batida escapar

Essa estrofe me faz lembrar, que apesar de tudo, apesar de todo julgamento e todas as fogueiras, nós resistimos. Nós, mulheres, nós, bruxas, bruxos e pagãos do mundo todo, nós estamos aqui, queimados, mas não enterrados. Nós seguimos em frente. Pois nossos corações ainda são nossos, assim como nossas crenças. E vamos continuar aqui, resistindo e lutando.

which witch

E Florence continuará, conosco. Cantando por nós. E pela Deusa. E pelos Deuses.

Until the beat comes out.

“Clímax”, de Chuck Palahniuk: Uma resenha (e uma reflexão sobre gênero e a sexualidade pós-moderna, com possíveis spoilers).

“Clímax”

A princípio, o livro é uma mistura insana de “Barbarella” com uma paródia ácida de “50 tons de cinza”. O que parece de uma comicidade trash acaba se revelando uma obra cheias de reflexões sobre gênero, sexo, mercantilização do sexo e vícios da sociedade pós-moderna, que Palahniuk parece saber criticar como ninguém e vem nos mostrando isso desde “Clube da Luta.”.

“Clube da Luta” e “Clímax” são bem diferentes, mas parecem trazer um tema que Chuck domina: Instintos primitivos e animalescos versus a psique e a vivência do ser humano e da sociedade pós moderna. Se na obra de Tyler Durden, o foco é em um dos maiores e mais controversos instintos que nos acompanham desde os primórdios, a violência, e seu aspecto enquanto a catarse-libertação que acaba descambando num projeto distópico de reconstrução mundial (através da violência, mas cobrando o preço de vidas inocentes); nesse, Palahniuk escolhe dissertar sobre uma das nossas pulsões mais antigas e reprimidas: O Sexo.

A trama começa com uma paródia de “50 tons de cinza” e  do gênero chamado mommy porn. Penny Harrigton, uma aluna recém-formada em Direito, pobre e interiorana, está tentando a vida em Nova York, e acaba por se envolver com o milionário Cornelius Linus Maxwell (cujo acrônimo dos nomes e sobrenomes forma “CLIMAX”, que dá título ao livro em português) e se descobre cobaia de apetrechos sexuais baseados no conhecimento tântrico, que serão lançados em larga escala como sex toys para mulheres do mundo todo. Porém, os brinquedos sexuais são tão viciantes que Penny logo percebe a iminente catástrofe e o maligno plano de Maxwell: Dominar o mundo através do controle do prazer e da mente femininos. A partir daí, nossa heroína decide lutar contra o vilã e salvar suas irmãs de gênero.

Como leitora, eu fiquei desconfiada. Homens escrevendo sobre mulheres e sexualidade feminina é algo que eu, como feminista e pesquisadora, não dou muito crédito. Há marcas fortes da imaginação masculina na narrativa de Chuck, porque ele ainda é um homem escrevendo sobre algo que ele jamais vai experimentar, mas a partir do momento que eu relaxei e aceitei como uma paródia de uma obra/um gênero de literatura, as coisas começaram a fluir melhor. Tão melhor que eu li em menos de 24 horas.

“Clímax” me atraiu sobretudo pela ideia da distopia de um mundo que caiu sob o domínio do prazer sexual, e do prazer sexual feminino. Por razões particulares, o assunto me interessa demais: Sou uma pequeno-burguesa filha de pai japonês que cresceu em um lar conservador, nunca ouviu uma palavra dos pais sobre sexualidade ou gênero, era altamente controlada em termos de horários e companhia. O Sexo, para a filha mais nova de uma família burguesa conservadora, era o meu Santo Graal. De um lado, via meus irmãos gozando de uma liberdade sexual excessiva e sem censura desde cedo, por outro, eu não podia passar de uma da manhã na festa com meus amigos. Por isso assim que sai de casa e perdi minha virgindade, confesso que adoro transar e o faço com frequência – com toda a devida proteção. Minha libido é incontrolável. Além disso, adoro ler e ver pornografia (da boa, feminista de preferência, estilo Anaïs Nïn), gosto de ir em sex shop e comprar apetrechos pra usar na cama com meus parceiros. Então, a ideia de um mundo caído sob domínio do prazer sexual feminino me pareceu bastante louca e eu quis entender a crítica mordaz que Palahniuk fazia sobre isso.

Indo adiante na narrativa e superando as desconfianças iniciais, Palahniuk desenvolve uma obra que critica o feminismo liberal (o “feminismo” da grande mídia, casado com valores capitalistas neoliberais, voltado para mulher branca e abastada que dita o consumo pós-moderno material e cultural, responsável por popularizar obras como Crepúsculo 50 tons de cinza. É o “feminismo rico e branco” que estimula a mulher a ir no sex shop só no dia dos namorados, faz matérias sobre como você deve se comportar sexual e socialmnte nas revistas como Cosmopolitan Marie Claire e nunca vai promover autoras como a Anaïs Nïn, cuja vida é uma odisséia sexual intensa usando do sexo para a descoberta e libertação de si mesma), apontando-o como fator que contribui na zumbificação de mentes femininas e impulsiona o capitalismo pós-moderno e industrial. Palahniuk também critica a mercantilização do sexo e a superficialidade das relações sentimentais entre os vários personagens, e, consequentemente, como ela se dá na sociedade pós-moderna.

Um fator surpreendentemente bom do livro é que Palahniuk critica os próprios colegas de gênero. A crítica ao anacronismo do papel masculino e a falta de tato do homem com a sexualidade feminina (que é o que abre as portas do sucesso para o plano de dominação de Maxwell) são intensas. Mesmo ao verem o domínio do Beautiful You, os homens fazem o que os homens sempre fazem: se juntam em alcateia e começam a destruir tudo, ao invés de tentarem ajudar e libertar suas parceiras escravizadas. E ao invés de se voltarem contra Maxwell, os homens querem queimar Penny em público.

Palahniuk também aponta o quanto o mundo é dominado pelas mulheres, mas o quanto nós não temos noção disso e acabamos por ser subjugadas por diversos aparelhos de repressão, no caso do livro, os sex toys tântricos da Beautiful You, mas na vida real temos várias revistas femininas e a grande mídia patriarcal e machista para controlar e ditar nosso comportamento. Chuck joga sal na ferida ao mostrar a necessidade das mulheres lutarem contra isso e se libertarem dos produtos produzidos pela cultura de massa do feminismo liberal; não, que eles não possam existir, mas devem coexistir com outras formas de pensar. Eles deviam ser uma via, não o único caminho.

Como forma de oposição ao protagonista e a doentia sexualidade pós-moderna, Palahniuk traz Baba Barba-Cinza, ex-mentora de Maxwell e feiticeira sexual do Tantra. Palahniuk recorre a uma fórmula que ele gosta: buscar no conhecimento ancestral uma forma de combater/canalizar os males pós-modernos. Baba é uma figura poderosa, cuja história dramática termina na sublimação através do domínios das práticas sexuais primais e do sexo tântrico. Baba é a esperança de Penny e traz a ideia do Sexo e do Prazer como formas de viver que devem ser usadas para libertação e aperfeiçoamento do ser humano e não para sua escravidão. Confesso que vou pesquisar sobre o Tantra depois, com mais calma, por causa do livro.

Por fim, pode-se dizer que a crítica de Chuck é em relação a própria obsessão humana com o prazer e em como isso é explorado e usado pelo capitalismo para escravizar pessoas e acaba se tornando uma forma de controle social. Até eu parei para refletir sobre as minhas possibilidades de estar sendo escravizada pela minha libido, espero que conhecer o Tantra ajude na canalização da minha energia sexual.

É um livro fantástico, de uma crítica sensacional e inigualável. Absolutamente merece ser lido por todos os públicos. Vou encerrar com uma das partes mais poderosas do livro:

“A cultura em geral vinha usando o sexo displicentemente para atacar os cérebros jovens e masculinos havia tanto tempo que a sociedade incorporara essa prática maligna como se fosse algo natural.
Talvez tenha sido por isso que o mundo aceitara tão rápido o sumiço das mulheres caídas no mesmo abismo. A superestimulação artificial parecia ser a maneira perfeita de sufocar uma geração de jovens que queria mais em um mundo em que havia cada vez menos. Fossem as vítimas homens ou mulheres, a dependência de estímulo parecia ter se tornado a nova normalidade.”.